domingo, 29 de junho de 2014

Consulta CREMESP - Quando se configura o abandono de tratamento por parte do paciente

Consulta    nº  155.608/11

Assunto:  Sobre como atestar de maneira legal e ética, o abandono de tratamento por parte do paciente.

Relator:  Conselheiro José Marques Filho.

Ementa:  Cumprindo todos os deveres  elencados, além de manter um relacionamento respeitoso e educado com seus pacientes, o médico dificilmente será vitima de qualquer manobra aética por parte de seu paciente. Se mesmo agindo corretamente o médico for vítima de uma manobra aética e imoral por parte de seu paciente, nossos tribunais, em pleno estado de direito, certamente punirão os culpados nas inevitáveis lides éticas e judiciais que todos que exercemos a arte hipocrática estamos sujeitos.
O consulente Prof. Dr. L.F.F., é médico regularmente inscrito neste Regional, exercendo a especialidade de cirurgia plástica em cidade do interior do Estado de São Paulo.
Em apertada síntese, refere que tem ocorrido com certa freqüência entre os cirurgiões plásticos fato que descreve em sua Consulta e solicita parecer deste Conselho.
Refere que certos pacientes, após se submeterem à cirurgia plástica e após um pós-operatório sem intercorrências, deixam de comparecer aos controles marcados.  Relata que, mesmo com a insistência das secretárias em agendar o retorno, as mesmas deixam de comparecer aos controles, sustam os cheques e alegam, invariavelmente, "desacordo comercial".
Refere que foi informado que deveria enviar uma carta à paciente, com "aviso de recebimento", convocando-a para comparecer à clínica.
Questiona, finalmente, quando se configura o abandono de tratamento por parte da paciente, qual o prazo mínimo que se deve estabelecer para o comparecimento da paciente, se o cirurgião fica desobrigado de dar assistência e qual legislação versando sobre o assunto que poderia ser consultada.

PARECER

O tema central dos questionamentos feitos pelo consulente refere-se a aspectos relacionados à relação médico-paciente.
O cenário da prática médica, em geral, e do relacionamento médico-paciente, em particular, mudou de forma extraordinária nos últimos cinqüenta anos.
Diversos fatores podem ser elencados para caracterizar tais mudanças, alguns deles com enorme impacto no relacionamento entre o profissional da saúde e o paciente.
Vários autores concordam que um dos fatores de maior impacto nas mudanças da relação médico-paciente foi a incorporação na prática médica do conceito ou do referencial bioético da autonomia.
O conceito de autonomia, fazendo parte de uma série de direitos humanos, decorreu da postura de diversos filósofos, principalmente John Locke, Baruch Espinosa e Imannuel Kant, reconhecendo, em suma, que toda pessoa tem o inalienável direito de fazer suas escolhas pessoais em relação à sua vida, suas crenças e seu relacionamento social.
As posturas desses filósofos influenciaram de forma extraordinária as revoluções democráticas do século XVIII.
A própria Revolução Francesa, talvez a de maior influência na história da sociologia ocidental, tinha como lema a liberdade, a fraternidade e a igualdade.
E liberdade, segundo o Professor Marco Segre, é um conceito absolutamente inseparável da Ética e do referencial da autonomia.
O referencial bioético da autonomia somente foi reconhecido formalmente em um documento oficial, após as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, sendo o primeiro artigo do Código de Nuremberg, que estabeleceu parâmetros mínimos para pesquisas com seres humanos.
Na prática assistencial da Medicina, apenas a partir da década de oitenta do século passado, passou a ser incorporado aos Códigos de Ética Médica e à prática médica.
Destaque-se que na relação médico-paciente, o referencial da autonomia deve ser visto de forma mais ampla possível e os próprios Códigos de Ética Médica tutelam essa assertiva.
Nossos postulados éticos atuais reconhecem, de forma muito clara, que todo o procedimento diagnóstico ou terapêutico só pode ser realizado após o devido esclarecimento do paciente, mas, por outro lado, o médico tem o direito de não dar assistência a quem não deseja, salvo em situação de risco iminente de morte.
A relação médico-paciente, apesar das transformações acima referidas, continua sendo uma relação de confiança, havendo um tácito contrato informal, onde o médico se obriga a utilizar todos os meios possíveis, ou ao seu alcance, para levar a cabo sua missão - assistir ao paciente; e este, colaborar ativamente, conforme seus valores, para o sucesso da atenção médica, ou seja, a própria saúde.
Feitas essa observações, entendemos que a relação terapêutica entre o cirurgião plástico e sua paciente não difere em nada da relação médico-paciente em qualquer outra especialidade.
Ambos os autores têm seus valores e suas autonomias e estes referenciais éticos devem ser respeitados por ambos os atores.
Ao médico cirurgião cabe o dever de utilizar todos os meios para chegar aos seus objetivos, utilizando-se de sua perícia, prudência e técnica e respeitar todos os ditames éticos de nossa profissão. Toda e qualquer anotação médica deve ser devidamente aposta ao prontuário, com todos os detalhes, inclusive, o fato de a paciente abandonar seu seguimento no pós-operatório.
Abandono, que por sinal, é um direito de qualquer paciente. Convocar a paciente por carta com "aviso de recebimento" parece-nos um grande absurdo. Estabelecer-se um prazo para a configuração do abandono vai no mesmo sentido. É de clareza meridiana, que se a paciente abandonar um seguimento, o cirurgião deixará de ter responsabilidade sobre o mesmo, até por impossibilidade lógica de manter a atenção médica.
Cumprindo todos os deveres acima elencados, além de manter um relacionamento respeitoso e educado com seus pacientes, o médico dificilmente será vitima de qualquer manobra aética por parte de seu paciente. Se mesmo agindo corretamente o médico for vítima de uma manobra aética e imoral por parte de seu paciente, nossos tribunais, em pleno estado de direito, certamente punirão os culpados nas inevitáveis lides éticas e judiciais que todos que exercemos a arte hipocrática estamos sujeitos.

Este é o nosso parecer, s.m.j.

Conselheiro José Marques Filho

APROVADO NA REUNIÃO DA CÂMARA DE CONSULTAS, REALIZADA EM 13.01.2012.
HOMOLOGADO NA 4.463ª REUNIÃO PLENÁRIA, REALIZADA EM 17.01.2012.

http://www.cremesp.org.br/library/modulos/legislacao/pareceres/versao_impressao.php?id=10495

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